Aconteceu
antes do barraco. A morada era um apartamento num bloco de três prédios. O
espaço pra meninada brincar ficava na garagem, um espaço depois da subida da
rampa ao portão, uma pequena quadra, uns banquinhos de pedra onde ficávamos às
vezes sentadas para ver as crianças brincando. Pela garagem tínhamos acesso aos
três prédios, a Paula, seu marido e suas duas filhas moravam no prédio do meio
e sempre descíamos com as meninas, as dela Tatá e Lalá e eu com a Juju.
Naquela
manhã descemos como de sempre, água, uns biscoitinhos, um suco e os brinquedos,
eu pouco sentava, pois tinha que ficar atrás da Júnia ainda pequena evoluindo e
firmando sua condição de bípede, mas neste dia me sentei ao lado da Paula
que lia sua revista. Coisa de minuto ela larga a revista, me olha e dá início
ao diálogo:
(A
conversa rendeu mais do que aqui vai, resumi para o que importou)
_
Edelvais, quero te falar uma coisa.
_
Claro, Paula, pode falar.
Notei
uma certa resistência nela.
_
Que foi, Paula, pode dizer. – e sorri.
_
Você não vai se chatear?
_
Êta, mulher, desembucha!
_
Você sabe, né, que todo nosso lixo que é recolhido vai para os aterros.
_
Sei sim, Paula.
_
E você sabe o que acontece nesses lixões?
_
Você fala com relação a que?
_
Falo sobre todas aquelas famílias que ficam nos lixões catando coisas para
vender ou aproveitar e até mesmo para comer.
_
Sei, Paula, e é tão triste, né?
_
É sim, Edelvais, é muito triste e tudo que aquelas pessoas conseguem recolher e
conseguem vender é o que muitas vezes garante a sobrevivência da família.
Ela
para, pensa um pouco, eu espero e ela continua:
_
Então, estes materiais que eles vão recolhendo para vender, só conseguem se a
coisa tiver num estado que dê pra vender, senão não pegam, até mesmo os
catadores que às vezes passam aqui na rua só pegam o que tiver bom pra vender
ou para reaproveitar. Bem, Edelvais, o que quero te dizer é que reparei...,
olha só, não pense que tô te vigiando...
_
Ah, qualé, Paula!
Ela
ri e continua:
_
Pois é, reparei que você junta tudo num saco só.
Nisto
minha cara começou a esquentar.
_
É, Paula, é verdade, junto tudo num saco só.
_
Ei, Edelvais, suas bochechas tão envermelhando.
Meu
rosto todo já tava pegando fogo, sentia ele todo quente, e sabia que devia tá
vermelho que nem um tomate dos bem madurinhos. Dei um sorriso e disse:
_
Putz, Paula, caramba, é a mais pura vergonha, tá valendo, tudo bem, continua.
Ela
sorriu e continuou:
_
Aí, é que quando a gente separa estes materiais na nossa casa, pelo menos eles
ficam menos contaminados, pelo menos podemos facilitar um pouco a vida destas
pessoas, seja aqui na porta dos prédios ou lá nos lixões. Daí, é que eles podem
recolher mais um pouco das coisas para poderem vender e tirar um a mais, que é
pouco mesmo, quase nada, sei lá deve fazer uma diferencinha.
Paramos
para olhar as meninas e ela perguntou:
_
Então, Edelvais, por que você não começa a separar as coisas na sua casa? Sei
que também é quase nada, mas é um pelo menos.
Olhei
bem pra ela e disse:
_
Paula, minha querida você é uma mulher Bendita, Bendita Paula!
_
Você não ficou com raiva?
_ Pelo que? Por você ter me dado este toque? Tá
doida? Só tenho que te agradecer e hoje mesmo já tô separando, metendo a mão na
lixeira e separando tudo.
Eu
ri, ela riu, demos um abraço.
Nisso
já era hora de subir, pegamos as meninas e cada uma foi pra sua casa.
Eu
fiquei de barriga de novo, da Leninha, e mudamos pro barraco, Paula e sua família
voltaram pro norte e as nossas meninas vão crescendo sabendo da importância e
tendo a prática de separar os materiais.
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Ilha das Flores